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O golpe do carro alienado

Polícia Civil de Minas Gerais caça quadrilha responsável pela venda, por preço irrisório, de automóveis financiados em nome de mendigos e de mortos. Compradores podem ser presos

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Leilão acontecerá no dia 17 de novembro Fotos: RM Sotheby’s/Divulgação

 

 

A compra, por um valor irrisório, de veículo financiado por uma concessionária ou em negociação segura pode parecer esperteza, mas é considerada crime para a Polícia Civil de Minas Gerais. A Delegacia de Furtos e Roubos de Automóveis da capital investiga há seis meses uma quadrilha especializada no golpe do “carro tumulto”, termo mineiro usado para o carro NP (não pago) ou Finan (financiado). Acusados de estelionato, os envolvidos usam dados falsos, laranjas e até documentos de mendigos ou pessoas que já morreram para financiar um veículo já com a intenção de não quitar as prestações. Pouco depois, os anúncios de carros com preço baixo se espalham pelo boca a boca e nos classificados da internet. Os veículos são revendidos a terceiros por um valor muito abaixo do mercado. Os compradores, para a polícia, cometem crime de receptação.

Há modelos variados e preços que despertam interesse, como um Honda New Civic 2007 por R$ 12 mil, uma picape Hillux do ano por R$ 10 mil, um Ford Fusion com 1 mil quilômetros rodados por apenas R$ 6 mil ou ainda um Stilo completo modelo 2010/2011 pela bagatela de R$ 4 mil. Às vezes há multas, IPVA atrasado, mas o comprador consegue circular por um ou dois anos, até que a financeira acione a Justiça e seja expedido o mandado de busca e apreensão do carro. Como o veículo não será encontrado no endereço apresentado à época da compra, só mesmo se for parado numa blitz.

 

“Investigamos uma quadrilha bem organizada, que aproveita as facilidades de compra e a falta de critérios das financeiras. Eles adquirem um veículo e depois simplesmente não pagam o financiamento e repassam o carro por muito menos do que ele vale. Há um esquema de revenda e uso do carro até que ele apresente restrições judiciais, o que demora no mínimo um ano. Quando isso ocorre, e a gente não pega na rua, muitas vezes o veículo é abandonado ou vai parar num ferro-velho”, afirma o delegado Ramon Sandoli, que também comanda a Coordenação de Operações Especiais do Detran/MG.

Segundo o delegado, a máfia do “carro tumulto” não age só na capital e na Grande BH. Os agenciadores, que também ‘trabalham’ no varejo, como revelam as investigações da Polícia Civil e os classificados da rede, negociam carros com compradores de São Paulo, Rio de Janeiro e estados do Sul do país. “Quem procura esse tipo de facilidade sabe no que está se metendo. Ninguém é inocente. Investigamos toda a rede de funcionamento desse golpe e estamos identificando os envolvidos e até os ferros-velhos. Todos nesse negócio estão praticando crimes”, diz o delegado.

 

Depois da publicação da reportagem na versão impressa do jornal Estado de Minas, os anúncios do golpista do Triângulo Mineiro foram retirados do site de vendas, mas utilizando a busca ainda era possível visualisar alguns carros negociados por ele, como esta Toyota Hilux

 


Receptação


Os acusados podem ser indiciados por estelionato e uso de documentos falsos, com penas que vão de um a cinco anos de prisão para cada crime e multa. De acordo com o criminalista Raimundo Cândido Júnior, ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil de Minas Gerais (OAB/MG), os compradores também podem responder a processo judicial por receptação e correm o risco de prisão. A pena para esse crime varia de um a quatro anos de prisão e pagamento de multa.

“Tem um ditado que mostra bem a atitude desse comprador: laranja madura na beira da estrada está bichada ou tem marimbondo no pé. Ele quer se passar por esperto, mas também comete um crime, assim como o vendedor do carro”, afirma o advogado.

 

Anunciante oferece Ford Fusion 2010 por R$ 6 mil 

 

Um anunciante de Araporã, no Triângulo Mineiro, oferece um Ford Fusion 2010 por R$ 6 mil, entre outros modelos sempre novos. Em um dos maiores sites de vendas na internet, o vendedor lista os itens de conforto e segurança, como abertura interna do porta-malas, sensor de estacionamento, GPS, bancos em couro com regulagem de altura, computador de bordo, teto solar, airbags, faróis de xenon e controle de estabilidade. Na conversa, o anunciante, que já vendeu pelo site três carros nos últimos seis meses, dá todos os detalhes do esquema.

 

– O valor é este mesmo, R$ 6 mil?, pergunta o interessado.

– Isso, é Finan, tumulto, responde o vendedor.

– Estou interessado no carro, mas não conheço o esquema. O valor me chamou a atenção.

– É tudo em nome de laranja. Você anda dois anos até enrolar.

– Mas não pago as prestações?, questiona o comprador.

– Se quiser pagar o problema é seu, mas está em nome de uma pessoa que nem existe.

– Preciso levar algum documento até a loja ou vocês montam tudo?

– Você é da polícia? Está querendo saber demais. Não tem loja não. É só trazer o dinheiro para mim. 

 

Utilizando o termo 'carro tumulto' em sites de busca, é possível achar algumas ofertas na internet

 

 

Vendedores orientam clientes a agir irregularmente em compras de carros

 

O pintor Pedro (nome fictício), de 45 anos, sempre deu duro na vida para comprar e manter os dois carros velhos e a moto que usava até o ano passado. Em dezembro, porém, a vontade de ter um carro zero falou mais alto e Pedro aceitou a dica de alguns conhecidos de comprar um “carro tumulto”. Morador da zona rural de uma cidade da Região Metropolitana de Belo Horizonte, ele procurou uma concessionária de veículos da capital e recebeu as instruções de como conseguir fechar o negócio: o pintor poderia “comprar” os documentos de um usuário de crack que tivesse nome limpo e precisasse do dinheiro para sustentar o vício.

Pedro diz que é honesto e se diz arrependido de ter participado de um esquema assim. No fim do ano, ele esteve em um ponto de venda de drogas e pagou R$ 200 a um viciado para usar seus dados de CPF e identidade. O contracheque e o endereço ficaram por conta do vendedor da concessionária, que cobrou R$ 700 para agilizar os documentos com um despachante. Com um carro novo da Fiat já emplacado, que custou só R$ 900, Pedro saiu da loja com a consciência pesada.

“Tinha vontade de ter um carro novo, mas era muito caro para mim. Muitos conhecidos já tinham comprado carro dessa maneira e resolvi arriscar. Fui a uma concessionária indicada por um amigo e o vendedor cobrou R$ 700 pelo carro zero financiado. Ele me disse como conseguir os documentos, que não precisavam ser meus. Sei que só posso rodar com o carro por um ano, mas onde moro não há muita fiscalização. De qualquer maneira, ando sempre preocupado e não pretendo mais fazer isso. Vou tentar vender o carro novo. Sei que consigo pelo menos R$ 8 mil nele, no tumulto também”, conta o pintor.

Ao simular interesse em uma moto Twister vermelha, ano 2005, o Estado de Minas procurou outro anunciante, que pedia R$ 3,5 mil. O anúncio apresenta “moto tumulto”, descreve os débitos com multas e IPVA e ainda faz proposta de troca por um carro. Por telefone, desconfiado, o vendedor fala que há 15 prestações atrasadas, que a moto ainda não tem restrições de busca e apreensão e desliga rapidamente.

 

Um vendedor, que trabalha com picapes na Região Centro-Sul da capital, oferece uma Montana preta Flex, ano 2007, por R$ 14 mil. Ele explica que o carro foi comprado por R$ 32 mil, faz algumas perguntas para tentar se certificar com quem está falando e diz que o negócio é perigoso. O vendedor garante que os documentos de 2011 estão em dia, conta que apenas 10 parcelas foram pagas do financiamento de 60 meses e insinua: “Se você não quiser continuar pagando…”. Questionado se não daria problemas à pessoa que financiou o veículo, ele responde: “Ah, dá sim. Mas o carro está em nome de terceiros e não será achado no endereço”.

Em um fórum de site especializado em venda de automóveis na internet, compradores e vendedores negociam os modelos. Um homem que se identifica como JM, da cidade de Arcos, no Centro-Oeste de Minas, debocha do valor apresentado pela anunciante Érika, que quer vender um Fox 2008, com placa “de fora”, por R$ 10 mil. Em uma mensagem em dezembro, ele anuncia seus carros de luxo por no máximo R$ 12 mil e escreve: “Queridinha, seus preços estão altos”.

 

Justiça procura 68 mil veículos em Minas

 

Levantamento divulgado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ/MG) mostra que, em dezembro de 2010, havia 68.684 carros com mandados de busca e apreensão no estado, sendo 21.722 na Região Metropolitana de Belo Horizonte e 12.240 deles na capital. Em comparação com o mesmo período de 2009, houve aumento de mais de 4 mil veículos com restrição judicial em todo o estado. Os processos abrangem desde a inadimplência de consumidores que não conseguiram pagar as dívidas e casos de estelionato a mandados expedidos por outras situações criminais.

Para o presidente da Associação dos Revendedores de Veículos do Estado de Minas, Rodrigo Souki, o estelionato não é só um problema das financeiras. Segundo ele, as instituições bancárias mantêm uma relação mais próxima com as concessionárias e, em caso de golpes, o prejuízo é solidário.

 

“Esses casos de estelionato ocorrem dentro da inadimplência, mas a nossa vigilância está maior. Sabemos que sistema das financeiras já acusa quando a ficha passa mais de uma vez com o mesmo CPF ou em situações onde não se consegue confirmar os dados do cliente. E nós também estamos mais atentos. Havia casos, por exemplo, de funcionários que diziam que vinham buscar contrato para o empresário assinar, ou filhos que queriam levar o documento para a mãe, que oficialmente pagaria o carro. Não aceitamos mais que os contratos de financiamento sejam assinados fora da loja e instalamos câmeras em todo o shopping de veículos para coibir a ação dos estelionatários, que não querem mostrar o rosto”, afirma Rodrigo.

O delegado Ramon Sandoli, coordenador de Operações Especiais do Detran/MG, admite que, neste tipo de crime, é difícil chegar aos autores, mas garante que as investigações estão adiantadas. “Eles usam celular com chip comprado em jornaleiro, nome e e-mails falsos nos anúncios na internet e só trabalham com dinheiro à vista, mas estamos conseguindo rastreá-los”, afirma o delegado. Segundo ele, as empresas demoram a pedir à Justiça o mandado de busca e apreensão e dificilmente repassam à polícia informações sobre fraudes que sofrem, o que prejudica a investigação.

Procuradas, as financeiras Santander e Itaú Unibanco não quiseram se pronunciar. A BV Financeira informou que, numa carteira com 4 milhões de clientes, a inadimplência nos contratos de veículos está abaixo do mercado. Por meio de sua assessoria, o banco informou que os casos de golpe são inexpressivos e que, comprovando-se a fraude, como o uso de dados de terceiros e documentos falsos para análise de crédito, a empresa instaura um processo e entra na Justiça com um pedido de busca e apreensão do carro.

Anúncio não informa qual o modelo nem a marca do veículo, apenas diz ser um automóvel ano 2010 com recibo entregue em branco. Vendedor deixa claro que não tira nenhuma dúvida, mesmo assim, vários interessados deixaram perguntas no anúncio, sem sucesso.