As incoerências no Brasil parecem não ter fim. Depois de promulgar a estranha medida que obriga os transportadores de escolares a usarem dispositivos de retenção para crianças, de maneira geral conhecidos como cadeirinhas, sem que os veículos usados nesse transporte tenham cintos de segurança de três pontos (para instalação dos dispositivos é necessário que o cinto seja de três pontos), agora o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) afirma que os cintos não precisam vir de fábrica, mas podem ser adaptados em “oficinas especializadas”. Absurdo imaginar que o órgão máximo de trânsito do país não tenha conhecimento de que a instalação de cintos de segurança requer pontos específicos de ancoragem, com testes e validação pelos fabricantes, sob pena de o equipamento não funcionar adequadamente.
“Não é possível fazer uma adaptação. O cinto é homologado pela montadora e seus pontos de fixação têm que suportar impactos de 1,5t”, afirmam os engenheiros Oliver Schulze, integrante da Comissão Técnica de Segurança Veicular da Sociedade de Engenheiros da Mobilidade (SAE Brasil), e Vítor Gambini, engenheiro de homologação de produtos da Takata, empresa fabricante de equipamentos de segurança para veículos. “Quando o veículo tem o cinto subabdominal já está ancorado em dois pontos e há a necessidade de um terceiro ponto superior, que resista a pelo menos 1,5t de tração, pois a energia durante um impacto é muito alta. E se esse terceiro ponto for colocado em qualquer lugar, pode não suportar nada. Portanto, é inviável querer adaptar um cinto de segurança”, explicam.
“Isso não é possível uma vez que os veículos com cinto abdominal não estão preparados para o cinto de três pontos.
IRRESPONSABILIDADE “É possível fazer adaptação do cinto de dois pontos para o de três pontos em oficinas especializadas em cintos de segurança”, afirmou o Denatran, por e-mail, à reportagem, quando questionado se não seria o caso de criar nova resolução determinando aos fabricantes de veículos destinados ao transporte escolar a oferecerem, de série, modelos com cintos de três pontos para todos os passageiros. Novamente questionado sobre os riscos e sobre quais seriam essas oficinas, o órgão respondeu que: “Trata-se de oficinas comuns, de fácil acesso ao cidadão, sendo especializadas em cinto de segurança”. Perguntamos se o órgão assumiria a responsabilidade de aceitar tais adaptações. E o problema foi transferido para o cidadão: “A responsabilidade de atestar a qualidade de um serviço é de quem o presta”, disse o Denatran. Perguntamos então sobre a homologação desses cintos e novamente o órgão máximo de trânsito do país se isentou: “Quem homologa o veículo é o Denatran, o que acontece no momento da criação do código de marca e modelo, estando essa relacionada à fabricação. Um veículo somente pode ser comercializado após homologado pelo Denatran”.
A reportagem do caderno Vrum ouviu também as principais montadoras que atualmente fabricam modelos destinado ao transporte de escolares: Fiat, Renault, Mercedes, Peugeot e Citröen. Todos atestaram a complexidade de instalação do cinto de três pontos e afirmaram estarem estudando a legislação e as possibilidades de passarem a oferecer o equipamento nas vans mais usadas no transporte escolar, a partir do ano que vem (as cadeirinhas serão obrigatórias em fevereiro). A única van que disponibiliza o equipamento é a Ford Transit, que já foi comercializada no Brasil, mas a montadora informou que a importação do modelo foi suspensa por razões estratégicas de mercado.
LUZ Segundo o diretor de segurança veicular da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva (AEA), Vilson Tolfo, apesar de não ser possível se fazer a adaptação do cinto, a AEA estuda uma maneira para que seja feito esse tipo de instalação, trocando-se os bancos e fazendo-se reforços no assoalho. O tema ainda está em fase de estudos na comissão técnica da AEA.
Entenda o caso
A Resolução 277/2008, do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), é que determina o uso dos dispositivos de retenção infantil para crianças, mas excluía os escolares;
Em junho deste ano, o Contran publicou a Resolução 533, excluindo os escolares das exceções, mas ainda havia dúvida em relação aos ônibus, que continuavam sendo exceção;
No último dia 23, a Resolução 541 esclareceu a dúvida, tirando das exceções todo e qualquer tipo de veículo escolar e, consequentemente, obrigando-os a usar as cadeirinhas e demais dispositivos.
Análise da notícia
APLAUSOS FRUSTRADOS
A exigência de que o transporte escolar seja feito com o uso dos dispositivos de retenção infantil, ou cadeirinhas de maneira geral, é extremamente importante e até vem tarde, visto que os dispositivos são essenciais para a segurança no transporte infantil. O problema é que não adianta criar leis que não têm como ser cumpridas, ou pior, incentivam gambiarras e podem tornar o transporte mais inseguro do que é hoje. O correto seria que antes de exigir do transportador que “se vire” para cumprir a lei, o Contran exigisse que os fabricantes de veículos destinados ao transporte escolar criassem soluções para oferecer o equipamento de fábrica, devidamente homologado e com segurança.