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Sucata do Tio Sam

Ônibus escolares e ambulâncias doados pelos EUA viram sucata no Brasil

Carlos Tadeu Antônio Filho, de Joinville, reformou veículos na época, mas amargou calote de prefeituras pelo serviço - Foto: Acervo pessoal  

Muito provavelmente, você já viu um school bus, como são chamados os ônibus especialmente projetados para o transporte escolar na América do Norte. Parte da cultura norte-americana, com recorrentes aparições em filmes e seriados de TV, esse tipo de veículo também foi protagonista no Brasil. Centenas de unidades com média de sete a 10 anos de uso foram doadas ao governo brasileiro no fim da década de 1990, como incentivo a um transporte feito até então de forma quase sempre precária – inclusive em caminhões, o célebre pau de arara. Ambulâncias do tipo UTI móvel também vieram para dar uma ajudinha na área da saúde. Passadas mais de duas décadas, aqueles que podem ser considerados os precursores de programas como o Caminho da Escola e o Samu perderam-se no tempo: a maioria virou sucata.

 

A principal razão para o abandono é a reposição de peças de manutenção, a maioria importada. Algo bem distante da realidade das prefeituras brasileiras, que atualmente adquirem veículos por meio de licitação. As dificuldades começam em manter os motorzões de seis e oito cilindros, acoplados a caixas de transmissão automáticas, muitas das vezes adaptados com mecânica nacional. Além disso, havia modelos de tudo quanto é jeito e marca, como vans, micro-ônibus e ônibus Chevrolet, GMC, Ford ou International.
As importações ocorreram por intermédio de entidades filantrópicas. Parte dos pesados foi usada por prefeituras mineiras, como a de Montes Claros, no Norte do estado. Poucos restam nas mãos de colecionadores ou empresários, que agora exploram o viés cultural dos school buses como publicidade.

Junto ao pai, o vendedor Carlos Tadeu Antônio Filho trabalhou na reforma dos pesados nos primeiros anos de uso. Ambos tinham uma oficina especializada em carros americanos em Joinville, Santa Catarina – o que teria influenciado na escolha do serviço. Na época (1996), a média de idade dos veículos era de 10 anos. Carlos conta que, como os ônibus seriam descartados por ter idade avançada para os padrões americanos, um pré-candidato a governador teria conseguido trazê-los, junto à Santiago Cancer Fundation. “Os ônibus chegavam de navio, desembarcavam no Porto de São Francisco do Sul e seguiam rodando até nossa oficina.
Fizemos reparos na lataria, pintura e estofamento, além de revisão nos motores e parte elétrica. Alguns foram adaptados para portadores de necessidades especiais”, explica. Mas depois de algum tempo, a oficina perdeu o apoio político, o que inviabilizou a continuidade do serviço. Até o início do ano, Carlos ainda guardava peças, mas as vendeu a colecionadores. “Na época, ainda não havia a Lei de Responsabilidade Fiscal e começamos a não mais receber das prefeituras pelo serviço e compra das peças de reposição. Acabamos por falir, pois o mesmo governo que nos cobrava impostos não nos pagava”, desabafa.

Em Contagem, na RMBH, school bus Ford é utilizado por escola de idiomas - Foto: Bruno Santos Lima/divulgaçãoSobral, no Ceará, ficou famosa pelo uso dos escolares. Conhecida por cultivar um estilo de vida que reverencia os americanos, a cidade de 200 mil habitantes, localizada a 235 quilômetros de Fortaleza, recebeu 15 ônibus, dois compactadores de lixo e duas ambulâncias junto à organização Cepai, em 1998. A entrega foi divulgada em publicidade da prefeitura, que trazia a expressão “Para os Estados Unidos de Sobral”.
Outras 10 unidades do school bus trabalharam para a Prefeitura de Montes Claros. Prefeito na época, Jairo Ataíde lembra que o valor desembolsado – referente à importação – era simbólico se comparado ao de um veículo novo. Apesar das especificações técnicas estranhas, os coletivos compensaram o investimento. “Funcionaram praticamente durante todo o período em que fui prefeito (de 1997 a 2004). Sempre que havia algum problema, procurávamos resolver dentro das possibilidades. Para a população foi ótimo, uma vez que naquela época nem havia ônibus escolar direito”, diz. Francisco Sá, na mesma região, também foi contemplada no início dos anos 2000 com quatro ônibus e um micro-ônibus. A vida útil dos veículos, entretanto, foi curta. Todos foram vendidos em leilão como sucata. “Teve ônibus que só rodou seis meses.
Passados seis anos, não circulava nenhum. Foi um presente de grego. Foi feita a doação, mas as taxas alfandegárias ficaram mais caras que os valores dos ônibus”, aponta o atual prefeito, Denilson Silveira.

- Foto: Bruno Freitas/EM/D.A Press
TRADIÇÃO

 

Estima-se que somente nos Estados Unidos os school buses transportem 10 milhões de estudantes por ano – mais da metade da população matriculada do país. Além da cor amarela e o design diferente dos ônibus atuais, com frente bicuda, típica de caminhões, se diferenciam pelas luzes, mensagens e demais dispositivos de alerta e segurança impostos por órgãos reguladores dos EUA e do Canadá.

Parte dos pesados atualmente repousa em ferros-velhos, como o situado no quilômetro 83 da MG-050, em Itaúna, na Região Centro-Oeste do estado. O local estoca um micro-ônibus e ônibus anteriormente usados pela Prefeitura de Gurupi, no estado de Tocantins. Recentemente, uma ambulância arrematada em um leilão foi agregada. Quase sempre os veículos são procurados para reposição. “A última venda, de uma caixa de transmissão, foi para a transformação de um escolar em trailer para lanches”, conta um dos proprietários do ferro-velho, Marlon Sambeca. Quem sabe com uma peça daqui e outra dali, e um bom trato, a história daqui pra frente não seja outra? (Colaborou Luiz Ribeiro)

- Foto: Bruno Freitas/EM/D.A Press

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